quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O Tesouro

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.
Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno , engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.
Ora, na primavera , por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril — os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferio. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro!
No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam… E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos as cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demónio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsilha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.
— Bem tramado! — gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até á fivela do cinturão.
Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:
— Manos! O cofre tem três chaves… Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!
— Também eu quero a minha, mil raios! — rugiu logo Rostabal.
Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:
Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto…
II
Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água. brotando entre rochas: caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o Sol, bocejava com fome.
Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.
— Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia connosco, Rostabal!
O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:
— Não, mil raios! Guanes é sôfrego… Quando o ano passado. se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!
— Vês tu? — gritou Rui, resplandecendo.
Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma ideia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.
— E para quê — prosseguia Rui. — Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até ás outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos…
— Pois que morra, e morra hoje! — bradou Rostabal.
— Queres?
Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando:
— Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de «cerdo» e de «torpe», por não saberes a letra nem os números.
— Malvado!
— Vem!
Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos — e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando E Rostabal, que lhes seguira o roo, recomeçou a bocejar, com tome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.
Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:
Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto…
Rui murmurou: — Na ilharga! Mal que passe! — O chouto da égua bateu o cascalho. uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas.
Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada — e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guanes, quando ao rumor, bruscamente ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua — Rostabal. caindo sobre Guanes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta.
— A chave! — gritou Rui.
E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda — Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor do sangue que lhe espirrara para a boca: Rui, atrás, puxava desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela. não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes
Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada — e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.
A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforges novos que Guanes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolegava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse urna estaca num canteiro, enterrou a folha toda na largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.
Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo — e um sangue mais grosso forrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.
III
Agora eram dele. só dele, as três chaves do cofre! E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro . alguns ossos sem nome. ele seria u magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos… Mortos como? Como devem morrer os de Medranhos — a pelejar contra o Turco!
Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges — e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão!
Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guanes fora bom mordomo — nem esquecera azeitonas. Mas porque trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia — destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.
De repente, tomado de urna ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa. tomou um punhado de ouro… Mas oscilou, largando os dobrões, que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui? Raios de Deus! Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente. limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:
— Socorro! Alguém! Guanes! Rostabal!
Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava — sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo.
Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água. que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou. caiu para cima da relva. que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu. com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente; esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição, todo o horror:
— É veneno!
Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.
Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando. lavava o outro morto. Meio enterrado na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

A AIA

Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.
A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.
A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesoiros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de oiro fechado na mão!
Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão . O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua borda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.
No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas… Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.
Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.
O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.
Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga… O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de oiro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.
E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.
Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?… Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho… Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração… E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada magnificamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.
Mas como? Que bolas de oiro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesoiro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesoiros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse…
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesoiros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesoiro rodaram lentamente. E, Quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de oiro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de oiro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo — ah! — lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa. a ama não se movia… Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de oiro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!… E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que joia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?
A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
— Salvei o meu príncipe, e agora… vou dar de mamar ao meu filho
E cravou o punhal no coração.
Eça de Queirós

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

OS VIZINHOS

As famílias se davam, cordiais, unha e sabugo. Não havia dia que não trocassem favores, emprestassem alegrias, esmiudaçassem conversas. Aquilo era como se não houvesse paredes. Ou que não tivessem ouvidos: digamos que uma família única distribuída em duas casas contíguas.

Chegavam ao ponto de partilhar o mesmo cão de guarda. O Silvester Estaline, assim se chamava o bicho, ensinado a patrulhar os espaços comuns da escadaria. Revezavam-se e vice-versavam-se nos cuidados do cão: um dia uns, outro dia outros. No meio das duas casas, o bicho apren¬dera a repartir fidelidades. Ele só tinha uma única matilha.

As famílias se vizinhavam tanto e por tanto tempo que os filhos acabaram por se namoriscar. Ela, de um lado, ele, do outro, come¬çaram por trocar melosos bilhetes. Depois, dizem as línguas, já parti¬lhavam travesseiro. Sem licença dos parentes. Mas não havia prova, só o cão poderia testemunhar.

— Começámos vizinhos, caminhamos para compadres.

Assim se aceitava o entretrançar dos destinos dos clãs. Até que come¬çaram as notícias. A televisão falava de conflitos étnicos. Assunto pequeno e longínquo. Mas alastrando grave como contagiosa doença. Nem as famí¬lias sabiam bem o que era isso de «étnico». Num jantar em comum, o mais velho do lado de lá assegurou que o termo deveria ser «técnico» e o conflito era o que opunha o treinador aos jogadores do clube. Sendo o clube o mes¬mo das duas famílias. E beberam em honra dos futuros golos, vitórias e taças.

Mas as notícias se adensaram, como as nuvens em novembro. Já todos sabiam o que era isso de «étnico». E falava-se de conflitos que, para além de divisões rácicas, tinham base religiosa. Até que se começou a falar de esca¬ramuças militares. As famílias deixaram de escutar em comum o noticiário televisivo. Porque sempre se degenerava em querela. Até que o vizinho da esquerda bateu à porta do outro e lhe perguntou:
— Desculpe, vizinho mas você tem raça?

O outro, pesaroso, acenou que sim. Que tinha. E era, exatamente, a outra raça, a contrária, a verdadeiramente pura. Não o disse ao outro. Para não o vexar.

— Desculpe, eu nunca reparei.

— Pois, lá em casa, nós já comentámos sobre a vossa etnia.

Descobriram, súbito, que pouco tinham a esclarecer. Em silêncio, a porta se fechou, parecia nem haver mão que a movesse. E mais que a porta, era o coração deles que se fechava.

Não houve mais visitas. Durante um tempo, os namorados ainda se encontraram no vão das escadas. Às escondidas. Mas o cão, o Silvester Estaline, denunciava a sua presença e os moços se separavam, chamados pelas vozes severas. Não tardou que fosse o último encontro. O grave foi o seguinte: ninguém lhes deu essa ordem de separação. Era coisa que eles absorveram do noticiário — a irreconciliável diferença entre suas culturas.

Os vizinhos liam, escutavam e ganhavam novos entendimentos do uni¬verso. Tudo ganhava uma nova lógica: havia a História, a religião, as tradi¬ções — tudo isso sempre os dividira. E as famílias se interrogavam: como puderam ter sido amigos?

Uma tarde, a moça tiquetacteou os dedos na janela do antigo » namorado. Queria saber uma última coisa: a religião dele qual era? A bem dizer, o moço nem sabia bem. Foi dentro, ao pai, para confirmar. Depois, veio a resposta: que era a outra, a única, a verdadeira. Mas qual? Isso o pai não explicara. A moça ainda tentou posterior esclareci¬mento mas a cortina foi puxada, por conveniência de silêncio.

A distância foi dando lugar ao ódio. E a convicção de que a culpa dos males mundiais residia ali ao lado. Desgraças passadas e futuras só tinham uma única e fácil explicação: os outros, ali à mão de serem condenados.

Certa noite, um dos vizinhos tomou a drástica decisão — agredir os outros, apanhando-os em desprevenção. O plano era simples, tão simples quanto a raiva: matar o chefe do anexo clã. Conheciam-se os movimentos do inimigo. Bastava emboscar o outro nessa rotina, ali no obscuro pátio.

E assim foi. Matraca na mão, o vizinho matador perseguia passo-ante-passo o vizinho morredor. Mas, eis que: um súbito e inesperado vulto. Era o cão, sabotando suas intenções. O outro vizinho se virou e perguntou o que se passava. Há muito que já não se falavam. Ficaram ali trocando pequenas falas, sobre assuntos práticos. Até encontraram gosto na conversa, uma ponta de saudade dos tempos. Combinaram os turnos nas passeatas a dar ao Silvester. Despediram-se, com gesto e palavras hesitantes. Já no umbral da porta, ambos tomaram decisão de regressar atrás. E os dois acariciaram o cão, comungando um mesmo envergonhado sorriso.
Mia Couto

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O VINGADOR

Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia, a escolher o revolver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.
“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.
Não havia ainda escolhido o revolver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.
Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.
O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:
- Eu aconselharia a Mousieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Mousieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhor sistema.
E o empregado, apertando e soltando o gatinho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.
- E qual o preço? – perguntou Sigaev.
- Quarenta e cinco rublos, Mousieur.
- Hum! É muito caro, para mim.
- Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo, do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... – o empregado fez um muxoxo de pouco caso – é um sistema, Mousieur, demasiadamente antiquado. Quem o compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.
- Não necessito matar-me ou a alguém – mentiu, com acento sombrio, Sigaev. – Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.
- No nos interessa o seu motivo –sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos – Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja. Para espantar os corvos, Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.
“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”
O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.
“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”
Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...
- Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith & Wesson – comentou o empregado, interrompendo o devaneio – Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.
A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.
- Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Mousieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas! Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...
Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!
“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem... O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....
Um minuto depois, pensava:
“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia. Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!...”
Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.
- Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson. Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Mousieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de que um marido há na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados – e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou: - E quem é o responsável, Mousieur? O Governo!
“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio...”
- Aqui está, Mousieur, um sistema novo – comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. – Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...
Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.
-Bem – balbuciou. – Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...
Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.
- E isso? Que é isso? – perguntou.
- É uma rede para caçar codornas.
- Qual o preço?
- Oito rublos.
- Pois pode mandar embrulhar.
O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.
Antón Tchécov

A PALAVRA MÁGICA

Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça — mesmo da velha —, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros ou cadernos ao filho, que andava na instrução primária. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz.
Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-lhe, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia, o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:
— Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão?
— Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí, se faz favor. Falei por falar.
— E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também eu.
— Faço o que posso — desabafou o outro.
— E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é.
Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra “inócuo”, estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo, disse:
— «inoque» será você.
Também o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo. Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:
— Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna de um homem é fraca. Que era um paz de alma. E um «inoque».
— Que é isso de «inoque»?
— Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.
Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:
— Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.
Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de carrascão. E desde aí, «inoque» significou, como é de ver, vadio e bêbado.
Ora tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender drogas para todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar carbúnculos, unguentos de encoirar, solda para costelas quebradas. Vendeu todo o sortido. Mas logo às primeiras experiências, as drogas falharam. Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de gabardina e unhas polidas. E como o vocabulário dos pobres era curto, alguém se lembrou da palavra milagrosa do Ramos. Pelo que, «inoque» significou trampolineiro ou ladrão dos finos. Mas como havia ainda os ladrões dos “grossos”, não foi difícil meter dentro da palavra mais um veneno.
Como, porém, as desgraças e a cólera do povo pediam cada dia termos novos para se exprimirem, “inócuo” foi inchando de mais significações. Quando a Rainha deu um tiro de caçadeira, num dia de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, «inoque», por ser um devasso e um assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil meter também no «inoque» o assassino de faca e a croia de porta aberta.
“Inócuo” dera a volta à aldeia, secara todo o fel das discórdias, escoara todo o ódio da população. A moca grossa de ferro, seteada de puas, era agora uma arma terrível, quase desleal, que só se usava quando se tinha despejado já toda a cartucheira de insultos. Até que o Perdigão dos Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses, num dia de feira, e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De olhos chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a vingança do homem. Perdigão arriou:
— «Inoque» será você.
Também ele não sabia que veneno tinham despejado na palavra, mas, pelo sim pelo não, aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as peles da matança, e abalou com ele pela ponte sul. Longos meses a palavra maldita andou por lá a descarregar o ódio das gentes. Até que um dia voltou a entrar na aldeia, não já pela ponte sul que dava para a Vila, mas pela ponte norte que levava a terras sem nome. Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razões com o freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas do vagabundo:
— Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.
— Não me faça festas que eu não sou mulher, seu «inoque» reles.
E “inócuo” significou um nome feio para um homem. Então o ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar água na fogueira.
— Cale-se também você, seu «inoque» ordinário. A mim não me mata você à fome como fez a seu pai.
Porque “inócuo” também queria dizer parricida. Então o Ramos, que passava perto, tomou a palavra excomungada nas mãos e pediu ao velho que a abrisse, para ver tudo o que já lá tinha dentro. Um cheiro pútrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo espanto de todos em redor. Com os dedos da memória, o caldeireiro foi tirando do ventre do vocábulo restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos. “Inócuo” era “bêbado”, ‘ladrão”, “incendiário’, ‘pederasta’, e, uma que outra vez, um desabafo ligeiro como “poça” ou “bolas”. Para o calão da gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo, soube-se um dia que significava ainda 'escroque', «souteneur», e mais.
A aldeia em peso tremeu. Era possível a qualquer apanhar com o palavrão na cara e ficar coberto de peste. Eis porém que uma vez o filho do Gomes, que andava no colégio da Vila, insultado de «inoque» por um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se à noite de ver no dicionário a fundura vernácula da ofensa. Procurou «inoque». Não vinha. Procurou «noque». Também não vinha. Furioso, buscou à toa, «quinoque», «moque», «soque». Nada. Quando a mãe o procurou, para ver se estudava, encontrou-o às marradas no dicionário. Choroso, o rapaz declarou:
— O meu «pagnon» chamou-me «inoque», mãe. Queria saber o que era. Mas não vem no dicionário.
— Não vejas! — clamou a mulher, de braços no ar. — Deixa lá! Não te importes.
— Mas que quer dizer?
— Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religião e mais coisas más. Não vejas!
Começaram então a aparecer as primeiras queixas no tribunal da Vila, contra a injúria de «noque», «inoque» e, finalmente, de “inócuo”, consoante a instrução de cada um. Como a palavra estropiada era um termo bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a versão da injúria em linguagem correta, sendo essa versão que instruía os autos.
— Chamou-me «noque».
— Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?
— Pois queria dizer que eu era ladrão.
E escrevia-se “ladrão”. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa, de outras vezes, nos termos de “assassino”, “devasso”, ou “bêbedo”.
Ora um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um processo ao guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos trilhos legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar, previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o juiz atirou uma palmada à coxa curta, clamou:
— Homem! Agora entendo eu. «Noque» era ‘inócuo’!
— Cultive-se o “inócuo”. Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraçadamente, porém, os receios do advogado eram vãos. A vida, de facto, emendara o dicionário. Como bola de neve, “inócuo” rolara do ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter o calor da compreensão e da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a correspondência vernácula da injúria do «pagnon», tentou reabilitar a palavra excomungada. Esbaforido, foi com o dicionário aberto no sítio maldito, da mãe para o pai, do pai para os amigos. Mas ninguém o entendeu. «Noque» ou “inócuo” era um anátema verde de pus.
— Que importa o que dizem? — clamou o heroísmo do rapaz. — Podem chamar-me «inoque» ou “inócuo”, que não ligo. Agora sei o que quer dizer.
Dias depois, porém, um colega precisou de o insultar, e arremessou-lhe outra vez com o termo nefando. Toda a gente conhecia já a opinião do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que o simples livro impresso.
Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu, preocupado apenas com descobrir uma maneira profícua de sovar bem o colega, para desforra integral.
Vergílio Ferreira

O VAGABUNDO NA ESPLANADA

O vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelos simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliviava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto alguém disse:
– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.
E assim resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o sol da tarde quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: "Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!" Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.
Manuel da Fonseca

UMA VIDA BOA

Se te dizem que faças o que quiseres, a primeira coisa que parece aconselhável é que penses com tempo e a fundo o que é aquilo que queres. Apetecem-te com certeza muitas coisas, amiúde contraditórias, como acontece com toda a gente: queres ter uma moto, mas não queres partir a cabeça no asfalto, queres ter amigos, mas sem perderes a tua independência, queres ter dinheiro, mas não queres sujeitar-te ao próximo para o conseguires, queres saber coisas e por isso compreendes que é preciso estudar, mas também queres divertir-te, queres que eu não te chateie e te deixe viver à tua maneira, mas também que esteja presente para te ajudar quando necessitas disso, etc. Numa palavra, se tivesses que resumir tudo isto e pôr sinceramente em palavras o teu desejo global e mais profundo, dir-me-ias: «Olha, pai, o que eu quero é ter uma vida boa.» Bravo! O prémio para este senhor! Era isso mesmo o meu conselho: quando te disse «faz o que quiseres», o que, no fundo, pretendia recomendar-te é que tivesses o atrevimento de teres uma vida boa. (…)

Queres ter uma vida boa: magnífico. Mas também queres que essa vida boa não seja a vida boa de uma couve-flor ou de um escaravelho, com todo o respeito que tenho por ambas as espécies, mas uma vida humana boa. É o que te interessa, creio eu. E tenho a certeza de que não renunciarias a isso por nada deste mundo. Ser-se humano, já o vimos antes, consiste principalmente em ter relações com outros seres humanos. Se pudesses ter muito, muito dinheiro, uma casa mais sumptuosa do que um palácio das mil e uma noites, as melhores roupas, os alimentos mais requintados (…), as aparelhagens mais perfeitas, etc., mas tudo isso à custa de não voltares a ver nem a ser visto – nunca – por um outro ser humano, ficarias satisfeito? Quanto tempo poderias viver assim sem te tornares louco? Não será a maior das loucuras querermos as coisas à custa da relação com as pessoas? Mas se justamente a graça de todas as coisas de que falámos assenta no facto de te permitirem – ou parecerem permitir – relacionares-te mais favoravelmente com os outros! (…) Muito poucas coisas conservam a sua graça na solidão; e se a solidão for completa e definitiva, todas as coisas se volvem irremediavelmente amargas. A vida humana boa é vida boa entre seres humanos ou, caso contrário, pode ser que seja ainda vida, mas não será nem boa nem humana”.

Fernando Savater, Ética para um Jovem, 4.ª ed., trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Presença, 1997, pp. 56-57

COMO HAVEMOS DE VIVER?

O Crime menos ameaçador é quase ignorado, mas também veicula a sua mensagem. Todos os dias, 155 mil utentes do Metro saltam sobre as portas de acesso. Num ano, esta evasão custa à cidade pelo menos 65 milhões de dólares que poderiam ser usados na melhoria dos transportes públicos,. Também dá um exemplo muito visível de desprezo pela ideia de que aqueles que tiram partido de um bem público devem desempenhar um papel no seu apoio. Mas por que não andar de borla, se se consegue não ser apanhado? Não é o que fazem todos? Então, para quê ser estúpido e agir de outra forma? Um americano entrevistado para os Habits of de Heart, um influente estudo dos valores norte-americanos de meados dos anos 1980, colocou-os nos seguintes termos:
Todos querem estar em cima e fazer as coisas à sua maneira. È como numa relação […] Quero dizer, não quero ser o único a sofrer. Não quero ser o único a sofrer. Não quero ser o único palerma. Não quero ser o bobo da festa quando os outros não fazem a sua parte.
O génio libertado pelo nosso incentivo ao simples interesse próprio debilitou o nosso sentido de pertença a uma comunidade. Cada indivíduo adota a ética de “olhar cá pelo número um”. Vemos os outros como fontes potenciais de lucro e esperamos que os outros nos vejam da mesma forma. A suposição é que o melhor é olharmos por nós próprios, pois o outro aproveitar-se-á de nós sempre que tal lhe for possível – e a suposição torna-se uma profecia que se cumpre a si mesma porque de nada vale ser cooperante com quem não sacrificará o seu ganho pessoal de curto prazo a favor de benefícios mútuos de longo prazo. Mas uma associação de indivíduos isolados não ligados por um sentido de local, por extensos laços de parentesco, por lealdade para com um empregador, mas apenas pelos laços efémeros do interesse próprio, não pode ser uma sociedade boa. Uma tal sociedade fracassará mesmo que professe que o seu papel é meramente conceder a cada cidadão “vida, liberdade e demanda da felicidade”. Fracassará na concessão disto, não só aos pobres, mas até aos ricos. Como escrevem Robert Bellah e os seus colegas e Habits of the Heart, “ Não é possível ter uma vida rica privada num estado de cerco, desconfiando de todos os estranhos e transformando a casa num quartel-general”. Na ética e na formação de uma comunidade há espirais virtuosas e espirais viciosas.
Estamos a caminho da criação de cidades que são meras agregações de indivíduos mutuamente hostis, vacilando no limite da guerra hobbesiana de todos contra todos. Sempre que o soberano não conseguir reunir força suficiente para exercer pressão sobre os restantes, a guerra pode eclodir, e os indivíduos estão armados de forma mais letal do que Hobbes poderia alguma vez imaginar. A menos que iniciemos agora a difícil tarefa de restaurar um sentido de compromisso relativamente a algo que não nós próprios, esse é o futuro que nos espera.

“ Como havemos de viver?” Peter Singer, Dinalivro , Lx2006

DUAS PALAVRAS

Tinha o nome de Belisa Crepusculario, não por fé de batismo ou escolha de sua mãe, mas porque ela própria o procurou até o encontrar e com ele se ataviou. Percorria o país, desde as regiões mais altas a frias até às costas quentes, instalando-se nas feiras e nos mercados, onde montava quatro paus com um toldo de linho, debaixo do qual se protegia do sol e da chuva para atender a clientela. Não precisava de apregoar a mercadoria, porque de tanto caminhar por aqui e por ali todos a conheciam. Havia os que a aguardavam de um ano para o outro e quando aparecia na aldeia com a trouxa debaixo do braço faziam bicha em frente da sua barraca. Vendia a preços justos. Por cinco centavos entregava versos de memória, por sete melhorava a qualidade dos sonhos, por nove escrevia cartas de namorados, por doze inventava insultos para inimigos irreconciliáveis. Também vendia contos, mas não eram contos de fantasia, mas longas histórias verdadeiras que recitava de enfiada sem saltar nada. Assim levava as notícias de uma aldeia para outra. As pessoas pagavam-lhe por juntar uma ou duas linhas: nasceu um menino, morreu Fulano, casaram-se os nossos filhos, queimaram-se as colheitas. Em cada lugar juntava-se uma pequena multidão à sua volta para a ouvir quando começava a falar e assim se inteiravam das vidas dos outros, dos parentes que viviam longe, dos pormenores da guerra civil. A quem lhe comprasse cinquenta centavos, dava de presente uma palavra secreta para afugentar a melancolia. Não era a mesma para todos, certamente, porque isso teria sido um engano coletivo. Cada um recebia a sua com a certeza de que ninguém mais a empregava para esse fim no universo inteiro e para lá dele.
Belisa Crepusculario nascera numa família tão miserável que nem sequer possuía nomes para chamar aos filhos. Veio ao mundo e cresceu na região mais inóspita, onde alguns anos as chuvas se transformam em avalanchas de água que arrastam tudo e noutros não cai nem uma gota do céu, o sol aumenta até ocupar o horizonte por inteiro e o mundo torna-se um deserto. Até completar 11 anos não teve outra ocupação nem virtude senão sobreviver à fome e à fadiga dos séculos. Durante uma seca interminável coube-lhe enterrar quatro irmãos mais pequenos e, quando compreendeu que chegava a sua vez, decidiu começar a andar pelas planícies em direção ao mar, a ver se, na viagem, conseguia enganar a morte. A terra estava escalvada, partida em gretas profundas, semeada de pedras, fósseis de árvores e de arbustos espinhosos, esqueletos de animais, embranquecidos pelo calor. De vez em quando deparava com famílias que, como ela, iam até ao Sul seguindo a miragem da água. Alguns tinham iniciado a caminhada levando os seus haveres ao ombro ou em carrinhos de mão, mas mal podiam mover os próprios ossos e ao fim de pouco caminhar acabavam por abandonar as suas coisas. Arrastavam-se penosamente, com a pele feita couro de lagarto e os olhos queimados pela reverberação da luz. Belisa saudava-os com um gesto ao passar, mas não parava, porque não podia gastar as suas forças em exercícios de compaixão. Muitos caíram pelo caminho, mas ela era tão teimosa que conseguiu atravessar o inferno e, por fim, chegar aos primeiros mananciais, finos fios de água, quase invisíveis, que alimentavam uma vegetação raquítica e que mais adiante se transformavam em riachos e pântanos.
Belisa Crepusculario salvou a vida e, além disso, descobriu a escrita por acaso. Ao chegar a uma aldeia nas proximidades da costa, o vento pôs-lhe aos pés a folha de um jornal. Pegou naquele papel amarelo e quebradiço, esteve longo tempo a observá-lo sem adivinhar o seu uso, até que a curiosidade pôde mais que a timidez. Aproximou-se de um homem que lavava um cavalo no mesmo charco turvo onde ela saciara a sede.
— Que é isto? — perguntou.
— A página desportiva de um jornal — respondeu o homem sem dar mostras de espanto pela sua ignorância.
A resposta deixou a rapariga atónita mas não quis parecer atrevida, limitou-se a perguntar o significado das patinhas de mosca desenhadas sobre o papel.
— São palavras, menina. Aí diz-se que Fulgêncio Barba derrubou o negro Tiznao ao terceiro assalto.
Nesse dia Belisa Crepusculario soube que as palavras andam soltas, sem dono, e que qualquer um com um pouco de manha pode agarrá-las para as vender. Considerou a sua situação e concluiu que além de se prostituir ou empregar-se como criada nas cozinhas dos ricos, poucas eram as ocupações que podia desempenhar. Vender palavras pareceu-lhe uma alterei nativa decente. A partir desse momento exerceu tal profissão e nunca se interessou por outra. A princípio oferecia a sua mercadoria sem suspeitar que as palavras podiam também escrever-se fora dos jornais. Quando soube isso calculou as infinitas perspetivas do negócio, com as suas poupanças pagou vinte pesos a um padre para lhe ensinar a ler e escrever e com os três que lhe s sobraram comprou um dicionário. Leu-o de A a Z e depois atirou-o ao mar porque não era sua intenção cansar os clientes com palavras enlatadas.
Vários anos depois, numa manhã de Agosto, estava Belisa Crepusculario no meio de uma praça, sentada debaixo do toldo a vender argumentos de justiça a um velho que solicitava a sua pensão há dezassete anos. Era dia de mercado e havia muito bulício à sua volta. Ouviram-se golpes e gritos, ela levantou os olhos da escrita e viu primeiro uma nuvem de pó e, em seguida, um grupo de cavalos que dela saiu. Tratava-se dos homens do Coronel, comandados pelo Mulato, um gigante conhecido em toda a região pela rapidez da sua faca e pela lealdade para com o chefe. Ambos, o Coronel e o Mulato, tinham passado a vida ocupados na guerra civil e os seus homens estavam irremediavelmente unidos ao malefício e à calamidade. Os guerreiros entraram na aldeia como um rebanho em fuga, envoltos em ruído, banhados de suor e deixando atrás de si os destroços de um furacão. As galinhas desapareceram a voar, os cães largaram a correr, as mulheres abalaram com os filhos e não ficou no local do mercado vivalma a não ser Belisa Crepusculario, que nunca tinha visto o Mulato e que por isso mesmo estranhou que ele se lhe dirigisse.
— Procuro-te a ti — gritou, apontando-a com o chicote enrolado e, antes que acabasse de dizer isto, dois homens caíram em cima da mulher atropelando o toldo e partindo o tinteiro, amarraram-lhe os pés e as mãos e puseram-na atravessada como um fardo de marinheiro sobre a garupa do cavalo do Mulato. Depois começaram a galopar em direção às colinas.
Horas mais tarde, quando Belisa Crepusculario estava quase a morrer com o coração transformado em areia pelas sacudidelas do cavalo, sentiu que paravam e que quatro mãos poderosas a punham em terra. Tentou pôr-se de pé e levantar a cabeça com dignidade, mas faltaram-lhe as forças e caiu com um suspiro, afundando-se num sono pesado.
Despertou várias horas depois com o murmúrio da noite no campo, mas não teve tempo de decifrar esses ruídos porque ao abrir os olhos viu na sua frente o olhar impaciente do Mulato, ajoelhado a seu lado.
— Finalmente acordas, mulher — disse, estendendo-lhe o cantil para que bebesse um gole de aguardente com pólvora a acabasse de recuperar à vida.
Ela quis saber a causa de tantos maltratas e ele explicou-lhe que o Coronel necessitava dos seus serviços. Deixou-a molhar a cara e depois levou-a até a um dos extremos do acampamento, onde o homem mais temido do país repousava numa rede pendurada entre duas árvores. Ela não conseguiu ver-lhe o rosto, porque ele tinha em cima a sombra incerta da folhagem e a sombra indelével de muitos anos a viver como um bandido, mas imaginou que devia ter uma expressão viciosa uma vez que o seu gigantesco ajudante se dirigia a ele com tanta humildade. Surpreendeu-a a voz dele, suave e bem modulada como a de um professor.
— És tu a que vende palavras? — perguntou.
— Ao teu serviço — balbuciou ela, procurando na penumbra para o ver melhor.
O Coronel pôs-se de pé e a luz da tocha que o Mulato levava iluminou-lhe a cara. A mulher viu a sua pele escura e os seus ferozes olhos de puma e percebeu logo que estava em frente do homem mais solitário deste mundo.
— Quero ser presidente — disse ele.
Estava cansado de percorrer aquela terra maldita em guerras inúteis e derrotas que nenhum subterfúgio podia transformar em vitórias. Passara muitos anos a dormir à intempérie, picado por mosquitos, alimentando-se de iguanas e sopa de cobra, mas esses inconvenientes menores não eram razão suficiente para lhe mudar o destino. O que em verdade o enfadava era o terror nos olhos dos outros. Desejava entrar nas aldeias debaixo de arcos de triunfo, entre bandeiras de cores e flores, que o aplaudissem e lhe dessem de presente ovos frescos e pão acabado de sair do forno. Estava farto de ver como os homens fugiam à sua passagem, as mulheres abortavam de susto e tremiam as crianças, por isso decidira ser presidente. O Mulato sugeriu-lhe que fossem à capital e entrassem a galope no palácio para se apoderarem do governo, como tomaram tantas outras coisas sem pedir autorização, mas ao Coronel não interessava tornar-se noutro tirano, desses já tinha havido bastantes por ali e, além disso, dessa maneira não conseguiria o afeto das pessoas. A sua ideia consistia em ser eleito por votação popular nos comícios de Dezembro.
— Para isso tenho de falar como um candidato. Podes vender-me as palavras para um discurso? — perguntou o Coronel a Belisa Crepusculario.
Ela já tinha aceitado muitas encomendas, mas nenhuma como essa, no entanto não pôde negar-se, receando que o Mulato lhe enfiasse um tiro entre os olhos ou, pior ainda, que o Coronel desatasse a chorar. Por outro lado, teve vontade de o ajudar, porque sentiu uma palpitação quente na sua w pele, um desejo poderoso de tocar naquele homem, de percorrê-lo com as mãos, de apertá-lo entre os seus braços.
Toda a noite e boa parte do dia seguinte esteve Belisa Crepusculario à procura no seu repertório das palavras apropriadas para um discurso presidencial, vigiada de perto pelo Mulato, que não tirava os olhos das suas firmes pernas de caminhante e dos seus seios virginais. Retirou as palavras ásperas e secas, as demasiado floridas, as que estavam descoloridas pelo abuso, as que ofereciam promessas improváveis, as que careciam de verdade e as confusas, para ficar apenas com aquelas capazes de tocar com certeza o pensamento dos homens e a intuição das mulheres. Fazendo uso dos conhecimentos comprados ao padre por vinte pesos, escreveu o discurso numa folha de papel e fez logo sinais ao Mulato para desatar a corda com a qual a tinha amarrado pelas canelas a uma árvore. Levaram-na novamente ao Coronel e ao vê-lo tornou a sentir a mesma ansiedade palpitante do primeiro encontro. Deu-lhe o papel e esperou, enquanto ele a olhava segurando-o com a ponta dos dedos.
— Que porra diz isto aqui? — perguntou por fim.
— Não sabes ler?
— O que sei fazer é a guerra — respondeu ele.
Ela leu em voz alta o discurso. Leu-o três vezes, para que o seu cliente pudesse gravá-lo na memória. Quando terminou viu a emoção no rosto dos homens da tropa que se haviam juntado para a escutar e notou que os olhos amarelos do Coronel brilhavam de entusiasmo, certo de que com essas palavras a cadeira presidencial seria sua.
— Se, depois de ouvirem três vezes, os rapazes continuam de boca aberta, é porque esta droga serve, Coronel — aprovou o Mulato.
— Quanto te devo pelo teu trabalho, mulher? — perguntou o chefe.
— Um peso, Coronel.
— Não é caro — disse ele, abrindo a bolsa que trazia pendurada do cinturão com os restos do último saque.
— Além disso, tens direito a uma prenda. Correspondem-te duas, palavras secretas — disse Belisa Crepusculario.
— Como é isso?
Ela começou a explicar-lhe que, por cada cinquenta centavos que um cliente pagava, oferecia-lhe uma palavra de uso exclusivo. O chefe encolheu os ombros, porque não tinha o menor interesse na oferta, mas não quis ser indelicado com quem o servira tão bem. Ela aproximou-se devagar do tamborete de cabedal onde ele estava sentado e inclinou-se para lhe dar a sua prenda. Então o homem sentiu o cheiro de animal montês que saía daquela mulher, o calor de incêndio irradiado pelas ancas, o roçar terrível dos seus cabelos, o perfume de hortelã-pimenta sussurrando-lhe ao ouvido as duas palavras secretas a que tinha direito.
— São tuas, Coronel — disse, ao retirar-se. — Podes usá-las como quiseres.
O Mulato acompanhou Belisa até à beira do caminho, sem deixar de a olhar com olhos suplicantes de cão perdido, mas quando estendeu a mão para lhe tocar, ela deteve-o com um chorrilho de palavras inventadas que tiveram a virtude de lhe espantar o desejo, porque julgou tratar-se de alguma maldição irrevogável.
Nos meses de Setembro, Outubro e Novembro, o Coronel pronunciou o seu discurso tantas vezes, que se não fosse feito com palavras refulgentes e duradoiras o uso tê-lo-ia transformado em cinza. Correu o país em todas as direções, entrando nas cidades com ar triunfai e detendo-se também nas aldeias mais esquecidas, lá onde só o rasto do lixo indicava a presença humana, para convencer os eleitores a votarem nele. Enquanto falava em cima de um estrado no centra da praça, o Mulato e os seus homens distribuíam caramelos e pintavam o seu nome com tinta dourada nas paredes, mas ninguém prestava atenção a esses recursos de mercador, porque estavam deslumbrados pela claridade das suas propostas e pela lucidez poética dos seus argumentos, contagiados pelo seu desejo tremendo de corrigir os erros da história e alegres pela primeira vez na sua vida.
Ao terminar a arenga do candidato, a tropa dava tiros de pistola para o ar e acendia petardos e, quando por fim se retiravam, ficava atrás um rasto de esperança que permanecia muitos dias no ar, como a recordação magnífica de um cometa. Imediatamente o Coronel se tornou o político mais popular. Era um fenómeno nunca visto, aquele homem surgido da guerra civil, cheio de cicatrizes, falando como um catedrático, cujo prestígio se espalhava pelo território nacional comovendo o coração da pátria. A imprensa ocupava-se dele. Os jornalistas viajaram de longe para o entrevistar e repetir as suas frases, e assim cresceu o número dos seus segui¬dores e inimigos.
— Estamos a ir bem, Coronel! — disse o Mulato ao completarem-se doze semanas de êxito.
Mas o candidato não o ouviu. Estava a repetir as suas duas palavras secretas, como fazia, cada vez com mais frequência.
Dizia-as quando abrandava a nostalgia, murmurava-as adormecido, levava-as consigo no cavalo, pensava-as antes de pronunciar o seu célebre discurso e surpreendia-se a saboreá-las nos momentos descui¬dados. E em todas as ocasiões em que essas duas palavras lhe vinham à mente evocava a presença de Belisa Crepusculario e excitavam-se-lhe os sentidos com a recordação do cheiro montês, o calor de incêndio, o roçar terrível e o perfume de hortelã-pimenta, até que começou a andar como um sonâmbulo e os seus homens compreenderam que se lhe tinha acabado a vida antes de alcançar a cadeira dos presidentes.
— Que se passa contigo, Coronel? — perguntava-lhe muitas vezes o Mulato, até que por fim, um dia, o chefe não aguentou mais e confessou-lhe que a razão do seu ânimo eram as duas palavras que trazia cravadas no ventre.
— Diz-mas, para ver se perdem o seu poder — pediu-lhe o fiel ajudante.
— Não tas direi, são só minhas — replicou o Coronel.
Cansado de ver o chefe a definhar como um condenado à morte, o Mulato pôs a espingarda ao ombro e partiu à procura de Belisa Crepusculario. Seguiu as suas pegadas por toda a vasta geografia até a encontrar numa aldeia do Sul, instalada debaixo do toldo do seu ofício, contando o rosário de notícias. Ficou à sua frente com as pernas abertas, empunhando a arma.
— Vem comigo — ordenou.
Ela estava à sua espera. Guardou o tinteiro, dobrou o pano da barraca, pôs o xaile pelos ombros e, em silêncio, trepou para a garupa do cavalo. Não trocaram nem um gesto em todo o caminho, porque o desejo que o Mulato sentia por ela se tornara raiva e só o medo que a sua língua lhe inspirava o impedia de a desfazer à chicotada, nem estava disposto a dizer que o Coronel andava aparvalhado, e que aquilo que tantos anos de batalha não haviam logrado, conseguiu-o um encantamento sussurrado ao ouvido. Três dias depois, chegado ao acampamento, levou de imediato a sua prisioneira até ao candidato, diante de toda a tropa.
— Coronel, trouxe-te esta bruxa para que lhe devolvas as suas palavras e para ela te devolver a hombridade — disse, apontando o cano da espingarda à nuca da mulher. O Coronel e Belisa Crepusculario olharam-se longamente, medindo-se à distância. Os homens compreenderam então que o seu chefe já não podia desfazer-se do feitiço das suas palavras endemoninhadas, porque todos puderam ver os olhos carnívoros do puma tornarem-se mansos quando ele avançou e lhe pegou na mão.

ISABEL ALLENDE, Contos de Eva Luna (1988)

Um presente de arromba

Foi cinco dias depois dos meus anos. Tinha dezassete anos e cinco dias. Era terça feira, 25 de novembro. Chovia. Apanhei o autocarro porque chovia muito quando saí da escola. Só havia um lugar vago. Sentei-me e tentei afastar a nuca da gola, que ficara encharcada enquanto esperava na paragem do autocarro, e parecia a mão gelada da morte. Sentei-me e senti-me culpado por ter apanhado o autocarro.
Culpado por ter apanhado o autocarro. Por apanhar o autocarro. Vejam: a coisa pior quando se é jovem é a banalidade.
A razão por que me sentia culpado por ter apanhado o autocarro é esta: tinham passado cinco dias desde os meus anos, não é verdade? Para o aniversário, o meu pai dera-me um presente. Um presente de arromba. Inacreditável. Deve tê-lo planeado e andado a poupar durante anos, literalmente, para o comprar.
O presente estava lá, à minha espera, quando cheguei das aulas. Estacionado em frente de casa, mas nem dei por isso. O meu pai passou o tempo a fazer alusões indiretas, mas não percebi. Por fim, teve de me levar até lá fora e mostrar-mo. Quando me deu as chaves, a sua cara crispou-se toda, como se lhe apetecesse chorar de orgulho e de alegria.
Era, é claro, um carro. Não vou dizer qual era a marca, porque penso que já nos rodeia demasiada publicidade. Era um carro novo. Com relógio, rádio, todo artilhado. Levou uma hora a mostrar-me todos os extras.
Eu aprendera a guiar e em Outubro tirara a carta de condução. Parecia-me útil, em caso de emergência, e podia fazer alguns recados à minha mãe e sair sozinho se quisesse. Ela tinha um carro, o meu pai tinha um carro e agora eu tinha um carro. Três pessoas, três carros. A única chatice é que eu não queria um carro.
Quanto terá custado a coisa? Não perguntei, mas deve ter sido, pelo menos, três mil dólares. O meu pai é contabilista e nós não temos quantias destas para coisas desnecessárias. Com aquele dinheiro, eu podia ter vivido um ano ou mais no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, se admitíssemos que conseguia uma bolsa de estudo. Foi o que imediatamente me passou pela cabeça, antes mesmo de ele abrir a porta reluzente. Podia ter colocado o dinheiro numa conta--poupança. É claro que eu podia vender o carro e não perderia muito dinheiro se o fizesse rapidamente. Pensava nisso enquanto ele me punha as chaves na mão e dizia: "É todo teu, filho!" E a cara dele tremia outra vez.
E eu sorri. Penso.
Fomos imediatamente dar uma volta no carro, é claro. Conduzi até ao parque, ele trouxe-o de volta, estava ansioso por pôr as mãos no volante e tudo correu bem. O problema só surgiu quando, na segunda--feira seguinte, descobriu que eu não fora de carro para o liceu. Porquê?
Não fui capaz de lhe explicar. Nem eu percebia bem. Se tivesse levado aquilo para o liceu e o tivesse arrumado lá no parque, desistia dele. Era meu. Pertencia-me. Era dono de um carro novo. Todo artilhado. A malta no liceu diria: “Eh, pá! Olha para aquilo! Porreiro! Topem o Griffiths-Acelera!”. Alguns deles gozariam, mas outros admirá-lo-iam verdadeiramente, e quem sabe se também a mim, por ter a sorte de o possuir. E isso é que eu não ia aguentar. Eu não sabia quem era, mas uma coisa é certa: não queria ser um acessório de um carro.

Ursula K. Le Guin
Tão longe de sítio nenhum
Lisboa, Ed. Fragmentos, s/d

O JARDIM EM FRENTE


Os big shots da empresa estavam reunidos em conferência. Assunto importante, desses que exigem atenção, objetividade. O presidente recomendara:
- Não estamos para ninguém. Esta porta fica trancada. Avisem à telefonista que não atenda nenhum chamado. Nem do Papa.
Começou-se por dividir o assunto em partes, como quem divide um leitão. Cada parte era examinada pelo direito e pelo avesso, avaliada, esquadrinhada, radiografada. Cartesianamente.
- Você aí, quer fazer o favor de parar com essa caricatura?- O presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi advertido pelo vice:
- E você, meu caro, podia deixar de bater com esse lápis, toc, toc, toc, na mesa?
Estavam tensos, à véspera de uma decisão que envolveria grandes interesses. Alguém bateu à porta.
- Não respeitam! Não respeitam o trabalho da gente! Isso não é país!
- Seja ou não seja país, quando batem à porta a solução é abrir, para evitar novas batidas, ou, mesmo, que a porta venha abaixo. Pois ninguém deixa de bater, e sabe que tem gente do outro lado.
O director secretário abriu, de óculos fuzilantes. O chefe da portaria, cheio de dedos, balbuciou:
- Essa senhora... essa senhora aí. Veio pedir uma coisa.
O primeiro impulso do diretor secretário foi demitir imediatamente o chefe da portaria, servidor antigo, conceituadíssimo, mas viu ao mesmo diante de si a imagem consternada do homem, e a lei trabalhista: duas razões de clemência. Pensou ainda em mandar a senhora àquele lugar de Roberto Carlos, ou a outro pior. Dominou-se: ela ostentava no rosto aquela marca de tristeza, que amolece até directoria.
- A senhora me desculpe, mas estou tão ocupado.
- Eu sei, eu é que peço desculpas. Estou perturbando, mas não tinha outro jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício em frente. Meu canário...
- Fugiu e entrou aqui no escritório? Eu mando pegar. Fique tranquila.
- Antes tivesse fugido. Morreu.
- E daí?
- Viveu quinze anos connosco. Era uma graça... pousava no dedo...
- E daí, minha senhora?
- O senhor vai estranhar meu pedido? Eu estava sem coragem de vir aqui. Por favor, não ria de mim.
- Não estou rindo. Pode falar.
- Os senhores tem um jardim tão lindo na cobertura. Da minha janela, fico apreciando. Então agora está uma coisa: posso fazer um pedido?
- Pode.
- Eu queria enterrar meu canário no seu jardim. Lá é que é lugar bom para ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele terrenão ao lado do edifício, com três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é grande demais para um passarinho, falta intimidade. Se o senhor consente, eu mesma abro a covinha. Não dou o menor trabalho, não sujo nada.
O director secretário esqueceu que tinha pressa, que havia um problema sério a discutir. Que problema? Naquele momento, o importante, o real era um canarinho morto, e amado.
- Pois não, minha senhora, disponha do jardim. Eu mesmo vou levar a senhora lá em cima, para escolher o lugar.
Subiram, escolheram o canteiro mais apropriado, onde bate o sol pela manhã, e à tarde as plantas balançam levemente, à brisa do mar.
- Não é abuso eu fazer mais um pedido? Queria que o jardineiro não revolvesse a terra neste ponto, durante três meses. O tempo de os ossinhos dele se desfazerem... Volto daqui há meia hora para o enterro.
Meia hora depois, voltava com uma caixinha forrada de veludo azul claro, e a reunião dos big shots, que ainda durava, foi suspensa para que todos, com o presidente muito compenetrado, assistissem ao sepultamento.

Carlos Drummond de Andrade