quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Paraíso perdido


Adão sentia-se satisfeito. Não entrava com ele o mais pequeno cansaço. O Paraíso em eterna primavera oferecia-lhe a vida nos seus frutos loiros, na sua floresta virgem, na água límpida que agora lhe corria aos pés. O céu muito azul, sempre sereno, olhava-o com benevolência; e até o Sol o acordava carinhosamente de manhã quando se levantava detrás da montanha do Éden transformando o Paraíso numa roseira de luz – o Sol tão lindo! Que ele adoraria se não soubesse que Jeová o vigiava a cada instante. Tudo o que pedira lhe fora dado: o pensamento, a fala e Eva.
Ali estava a sua companheira – bem sua, não era uma daquelas coisas duras que tinha dentro dele?
Devia ser meio-dia. Deitados à sombra duma árvore descansavam das brincadeiras da manhã: correr, jogar às escondidas e pôr pedrinhas no regato para o desviar.
Caído o silêncio no jardim divino, Adão adormeceu. Vendo-o a dormir, Eva levantou-se pé ante pé – não fosse Jeová ouvi-la – atravessou o ribeirinho e encaminhou-se para o interior da floresta; as folhas secas estalavam alegremente sob os seus pés.
Chegou junto duma árvore pequena, mas tão atraente, tão linda, tão proibida...
Lembrava-se daquele dia em que Jeová, pegando na mão dela e na de Adão, os levara diante da árvore e tendo reunido também os animais, dissera a todos:
- Esta árvore chama-se do Bem e do Mal. Só pode saber o que são o Bem e o Mal quem comer daqueles frutos. Ai de quem o fizer! Persegui-lo-ei p´ra fora do Paraíso! Vós não imaginais o que vai por fora disto! Quem para lá for há-de amargar o doce desta fruta!
Os animais e Adão bem depressa se tinham esquecido da árvore proibida, mas ela, que nunca reparara dantes, passava horas esquecida a mirá-la.
A que saberia a fruta? O que seria o Bem e o Mal? E se tirasse um pomo? E se Deus via? Expulsava do Paraíso. Ora! O Paraíso era tão aborrecido, todos os dias om mesmo: brincar com pedrinhas, com os animais, brincadeiras onde de dia para dia não aparecia novidade.
Naquele momento hesitou ainda. Por fim chegou-se à árvore e estendeu o braço. Tornou a deixá-lo cair – E se deus vê? Agora não vê – e tirou um fruto.
Contemplou-o longamente – tão redondinho, tão dourado! Cheirou-o! Que perfume! E era do Bem e do Mal!
Um estalido se ouviu na floresta. Eva deixou cair o fruto proibido, abaixou-se, tapou-o com folhas secas e esperou com o ruído do peito a bater mais depressa.
Não veio nada. Talvez um galho. Apanhou o fruto e rapidamente deu-lhe uma dentada, e outra e outra.
Começou a sentir-se mais leve, mais alta, mais diferente. Um arrepio quente passou-lhe a pele. Gemendo de alegria estranha, apeteceu-lhe rebolar-se no chão.
Pensou no companheiro. Vou – lhe dar um para ver como é bom! Arrancou-o e voltou correndo para junto de Adão.
Sacudiu-o e contou-lhe tudo: mostrava-lhe o fruto e ria-se sem saber o que tinha. Abraçava-o, chegava a boca à dele.
- Ó Eva! O que foste fazer! E agora?
Ela esfregava-se contra ele, enlouquecida de desejo novo.
- Que é que tu tens? Deixa-me!
Uma boca quente e húmida abafou-lhe as palavras. Repeliu-a.
Ela agarrou-se e meteu-lhe o fruto proibido na boca.
– Come, Adão!P’ra sentires o que eu sinto...
Ele trincou uma, duas vezes e logo lhe pareceu ter acordado em si mesmo. Um calor fulgurante percorreu-o todo e inconscientemente enlaçou-a. Ofegantes no novo mistério torceram-se e rebolaram nas folhas amarelecidas.
Uma serpente que se aquecia ao sol viu tudo. A nova correu o Paraíso e os animais do céu e da terra assaltaram a árvore.
- Adão e Eva comeram e são felizes! - gritavam uns aos outros.
Um elefante derrubou-a e por cima, por baixo, por todos os lados sugaram-na, rasgaram-na, despedeçaram-na.
Os peixes do rio e do mar suplicavam um pedacinho. O leão atirou-lhes um ramo e a disputa estendeu-se às águas.
Devorada a árvore do Bem e do Mal, todos fizeram como Adão e Eva e um ruído imenso levantando-se do Paraíso chegou ao céu.
Jeová, rodeado de uma multidão de anjos, espreitou do alto e viu aquela bacanal fantástica enchendo a sua obra. Ficou boquiaberto e voltado a si gritou:
- Vamos castigar tudo aquilo! E voltou-se para os anjos.
Só meia dúzia de velhos anjos lhe restavam e lá muito ao longe viu asas brancas que irresistivelmente atraídas voavam para o éden.
Era de mais! Passava além do Praraíso!
- Fora! E o seu brado fez tremer a terra inteira.
E como um furacão, cabelos arrepiados na corrida, auréola tombada sobre uma das orelhas, barba desgrenhada, olhos gritando fogo, a túnica a esvoaçar, Jeová desceu ao Paraíso.
- Fora! Fora! Fora já!
A criação entreolhava-se envergonhada. Os anjos e os pecadores fitavam o chão e sentiam um peso enorme nas asas agora manchadas.
O ente supremo atacou primeiro os seus antigos companheiros:
- Ó anjos miseráveis que eu criei! Ó vis! A vossa culpa é maior! E calou-se por momentos embebido em cólera. Depois estrondeou de novo: -Todos p’ró inferno! Ide p’ra diabos! Desapareçam! Infames! E num arranco de superioridade: Algum se atreve a olhar p’ra mim!?
Dentre eles uns olhos verdes se levantam insolentes: - Eu!
- Tu, Lucifer! -berrou Jeová no auge do furor - Pois ficas Satanás! Ficas chefe do grupo! Vai p’ró inferno!
Lucifer começou lentamente a mergulhar no solo. Os outros anjos ficaram imóveis.
- Que é que esperam?! Já atrásdele! Sumam-se da minha vista!
Os daí por diante ex-anjos desapareceram cabisbaixos pela terra dentro.
Arrumados os imortais, Jeová voltou o rosto trémulo de ameaças para os mortais.
Adão, que conservava na mão um bocadinho de fruto proibido, levou-o maquinalmente à boca.
- Patife! Diante de mim! Fora! Fora tudo! Esperem no mundo que escolheram a minha condenação! Saiam!
O primeiro homem atemorizado engasgou-se para todo o sempre.
Os animais começaram lentamente a desfilar diante de Deus em direcção à porta que os anjos fiéis tinham aberto na muralha do Éden.
Então, resoluta e medrosa, linda como nunca, o peito arfando, o cabelo des grenhado docemente pela volúpia, tapando o corpo com um braçado de folhas de parra, Eva procurou o mais terno sorriso que lhe ensinara a árvore do Bem e do Mal e disse gorjeando as palavras, ébria ainda:
- Não sejas muito severo, meu Senhor!
Jeová sentiu dentro dele uma sensação melodiosa, espantou-se de não ter gritado e disse de si para si enquanto a via afastar-se ao lado de Adão no meio da turbamulta:
- Esta Eva!
Foi por isso que anos mais tarde Deus se fez homem e habitou entre nós. Mas o mundo era mais sabido – tinha comido a árvore do Bem e do Mal – e Deus, que a guardara sem lhe tocar e a quem não restara nem uma folhinha seca tinha ficado bondoso para sempre – era de esperar que fosse enganado.

Sena, Jorge de(1982). Génesis. Lisboa:Edições 70

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

AS MÃOS DO MEU FILHO













Erico Verissimo (1905-1975)


Todos aqueles homens e mulheres ali na plateia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do reflector envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros. Beethoven.
Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado.
Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar mal ferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda.
Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente.
Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do reflector. O pianista está agora voltado para a plateia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.
Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.
Suggestion Diabolique.
D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos.
Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.
Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!
D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo.
D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no tecto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos...
De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. "Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?" Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. "Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!" Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava para a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia...
De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. ("Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.)
A escuridão torna a submergir a plateia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam, como projécteis sonoros.
Navarra.
Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.
Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo...
— Inocêncio, quando é que tu crias juízo?
O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma proposta:
— Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras...
— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?
— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.
Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar.
Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora... E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos... o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar...
De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: "Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!"
A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.
No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinquenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinquenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.
Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranquilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam... No fim de contas ele não era nenhum santo.
Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá... esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.
Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre.
No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura:
— Margarida...
A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.
— Chit!
Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho, Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugentá-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.
Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:
— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!
Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.
No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda:
— Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim, senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:
— Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou, devo a ela.
— Não diga isso, Betinho!
D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam.
Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.
Afasta-se na direcção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas... Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias...
O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.
— Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.
— Linda mesmo.
Pausa curta.
— Não vê que sou o pai do moço do concerto...
— Pai? Do pianista?
O porteiro pára, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:
— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.
Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.
— Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha seis meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas.
O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas... Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis... Não podia ser o artista que é.
Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinquenta mil-réis e mete-a na mão do mulato.
— Para tomar um traguinho — cochicha.
E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.


Veríssimo, Erico (1942)